domingo, 24 de agosto de 2008

LENDO GUIMARÃES ROSA


Hoje, decidi veementemente escrever. E ao fazê-lo, optei por tecer algum comentário acerca de um texto simplesmente fantástico de um dos maiores escritores da literatura brasileira, a saber: João Guimarães Rosa.

E em particular, no tange essa audácia, pois isso me confere um razoável significado, o texto intitulado: A Terceira Margem do Rio, cuja fascinante história do Livro Primeiras Estórias[1], nos fala de uma família de três filhos e o casal, ou seja, pai e mãe. Nessa narrativa inicial, o autor na sua forma ímpar de escrever, nos delicia com uma linguagem rústica – típica de sua verve literária – a história dessa família cuja história é narrada pelo filho mais velho.

Na dita história (estória), o filho começa a narrativa traçando o perfil de seu pai, [...] Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino [...], em seguida informa que quem tinha um pouco mais de formação era a mãe. [...] Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente. [...]. Em seguida, fecha o parágrafo, com o que vem a ser o desenrolar da história, pois nesse momento o filho informa que o pai mandara construir para si um barco. Nesse momento, a história passa a ter contornos reflexivos, complexos e obscuros, entendendo assim o contexto do texto, à categoria de destino. Pois a trama que se segue, é relatada em termos de opinião geniosa, uma vez que a mãe era integralmente contra a idéia dessa canoa. [...] Nossa mãe jurou muito contra a idéia [...]. Nesse instante se instala a crise, a tensão, um micro-conflito, que se apodera da narrativa movendo o leitor para as abissais do destino que pode assumir uma decisão. [...] Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta.[...]. E incrivelmente o velho toma o seu destino decidido naquele instante, indo ficar na sua canoa rio a dentro.

Na continuação do texto, depois de traçado as linhas gerais da história, começa a fase analítica, pois o velho não mais voltou, ficando por lá, na canoa entre por entre as margens, para espanto de todos. Depois de algum tempo a sua filha casou e a mãe foi morar com ela e o outro filho também tomou o seu destino, ficando apenas, o filho, narrador da história, que ao longo do tempo, passa a assumir as duras e árduas cicatrizes do destino e da incompreensão da possibilidade humana de se viver uma decisão real por mais desconexa que pudesse parecer, pois ele mesmo viveu sempre à margem da decisão paterna, tentando em vão, entender a coisa tal qual se afigurava. [...] Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. ... "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.[...].

Nos trechos finais, o autor mostra a dureza do tempo, de viver, enfim, das relações de causa e efeito, e suas conseqüências e seqüelas em nossas vidas, dando-nos uma imagem metafórica da vida como um rio. [...] Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio [...].

Por fim, entendendo a vida como um rio, com suas margens e perspectivas, suas verdades e incertezas, com seus movimentos que desafiam as estruturas lineares do tempo, o autor, com o seu título a terceira margem do rio, nos remete a outra possibilidade, outra perspectiva da percepção, ou seja, nos mostra que para além de nossa visão da vida como as margens do rio com suas duas margens apenas é por demais limitado, tendo em vista a outra margem de nossa própria história (estória), movidas pelas nossas decisões arbitrárias, por nossa ânsia de liberdade, que dão movimentação diuturna, e que, por conseguinte, entendemos a chamar para nossas vidas, de destino, a terceira margem.
[1]"Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32.

Por Marcos Wender